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sábado, fevereiro 11, 2006

Chapa quente em 806 D.C.

Deu no jornal: cientistas (sei lá de onde) descobriram que este ano é o mais quente desde 806 D.C. Como eu acredito na teoria daquele detetive amigo de William Hurt em "Corpos Ardentes" que depois o prende, segundo a qual o calor muda o humor das pessoas e elas saem fazendo mais besteira por aí, fui dar uma pesquisada para ver como o calor afetou o humor do mundo há 1.200 anos.
Pode ter sido um ano de angústia e ao final, de alívio, para muitos católicos. Porque o bispo Gregório de Tours, no século VI D.C, havia previsto que o fim do mundo seria entre 799 e 806. Com aquele calor todo, muita gente deve ter se lembrado da profecia do principal historiador dos merovíngios e começou a rezar pela sua alma.
E foi o fim do mundo sim pelo menos na cidade de Heracléia, na costa do Mar Negro. Naquele ano, ela foi cercada e depois saqueada pelo exército de Harum al-Rachid, um califa famoso pela sua amizade com Carlos Magno e que também manteve boas relações diplomáticas com a China. Ele também havia conseguido uma détente com o Império Romano do Oriente, após prometer à Imperatriz Irene não atacar Constantinopla desde que ela sempre lhe pagasse um tributo em ouro. Mas Irene foi derrubada do trono por Nicéforos, que não só mandou avisar al-Rachid que não ia pagar mais nada como pediu de volta o que a imperatriz deposta havia mandado. Em reação, o califa tomou Heracléia. Nicéforos voltou a pagar o tributo, mas depois, interrompeu de novo o pagamento, para ser novamente derrotado, com seu exército de 125 mil homens, por 15 mil comandados por al-Rachid, em uma batalha em Fríngia, província romana na Ásia Menor. Ferido na batalha, em que 40 mil de seus homens foram mortos, Nicefóre voltou a pagar o tributo - e depois voltou a suspender o pagamento. O califa só não o matou, como queria, porque morreu antes, doente. A ironia histórica é que Nicéfore significa "portador da Vitória" - foi esse, aliás, o pseudônimo adotado por Joseph Niépce, o inventor da fotografia, na onda de adoração ao classicismo e antiguidade que veio com a Revolução Francesa.
Um massacre em menor escala foi registrado em uma pequena ilha na costa escocesa, no Monastério de Iona: 68 monges foram massacrados pelos vikings. Eles já haviam atacado aquele celeiro de mártires e santos desde outras duas vezes. Os sobreviventes do massacre não esperaram uma quarta: foram embora para a Irlanda. Acredita-se que foi poucos anos antes deste ataque que se produziu no monastério um dos mais preciosos livros da história, o Book of Kells, coletânea dos evangelhos com enfeites, desenhos e ornamentos que o tornam uma relíquia e uma memória do trabalho que era fazer um livro na era Medieval. O livro está atualmente no Trinity College, em Cambridge. Em 1938, Iona voltou a entrar no mapa do misticismo, porque foi fundada lá uma seita cristã que buscava voltar às antigas tradições celtas - new age avant la lettre.
Do outro lado do mundo, outro fato importante para a história da religião em 806 D.C. foi a introdução do budismo no Japão. Obra de Kobo-Daishi, ou Kukai, artista e monge japonês que naquele ano voltava da sua embaixada na China. Foi lá que ele estudou o budismo Tantra. Kukai depois fundou a escola Shingon, ou "Palavra Verdadeira" , do budismo, e o monastério Kongobujy no Monte Koya, local de devoção até hoje no Japão. Excelente calígrafo, a ele também se atribui a criação da forma pela qual o japonês é escrito até hoje.
Enquanto Kukai voltava para casa, os chineses, em 806, criaram o papel-moeda. Foi naquele ano que começaram a ser usadas pela primeira vez cédulas em lugar de animais e outras mercadorias para trocas comerciais na China. O costume durou cerca de 500 anos. Como naquela época não havia monetarismo ainda, a produção de notas cresceu tanto que houve talvez a primeira inflação causada pelo excesso de emissão de papel-moeda no mundo. Assim, em 1455, os chineses abandonaram o que Marx chamaria de "fetichismo do dinheiro" - que só reapareceria na Europa, muitos anos depois.