"Essa história é muito legal, heim?", disse eu. "Isso é mais velho do que minha avó", falou a minha interlocutora. E pimba, eu tinha perdido um duelo de descolação. E perdi por distração: a história era bem chata, mas eu não quis mostrar desinteresse e... acabei batido na arena desta forma comum de interação social.
Vocês sabem como isso funciona, não? Vários eventos sociais são na verdade ringues furiosos de duelos de descolação em que não saber algo que todo descolado tem de saber pode resultar em dor, humilhação, opróbrio e degredo para a África. Como por exemplo: você vai num, num... vernissage. Chega, engole o salgadinho frio, rouba uma taça de Almadém do garçom que passa a bombordo tentando fingir que não lhe viu. E diz "oi" para um conhecido mas que não chega a ser amigo, alguém que alguém te apresentou em outro convescote. Não tem mais ninguém que você ou a pessoa conheçam por perto, para poderem fugir.
E assim, um fica testando o outro para ver se vale a pena perder tempo conversando com ele. O que valeria por dois motivos: a) a pessoa ser bem relacionada ou b) você poder impressionar a pessoa, fazer dela a platéia, torná-la a multidão de um só que vai render-se à sua genialidade. E assim - vapt - em dois segundos você se enfiou num Duelo de Descolação. Que começa com uma porção de citações de livros, filmes e músicas da moda, mas em relação a detalhes que só descolados saberiam. Como dizer "o pai da MIA já morou na Mangueira, foi assim que ela conheceu o funk carioca" ou coisa parecida.
Mas o golpe muito usado, por ser o mais fatal, garantir uma vitória rápida e sangrenta, é um dos dialogantes citar alguma celebridade pelo prenome, para provocar a pergunta "quem?" do oponente e aí sim, declinar o nome inteiro da pessoa, com uma expressão de contido horror, por ter de fazer uma coisa tão empregadinha como dizer o nome inteiro de um famoso, só porque o botocudo analfabeto - com quem você está fazendo um trabalho de responsabilidade social de conversar na vernissage, quando poderia estar conversando com gente muito mais interessante - não tem intimidade com essa pessoa. Afinal de contas, ele NÃO É UM DESCOLADO.
Um exemplo prático? Dizer, por exemplo, "ontem o Luiz Fernando me contou..." e o oponente pergunta: "Luiz Fernando?". "Carvalho", responde o interlocutor. NOCAUTE, SENHORES TELESPECTADORES, FOI INCRÍVEL!!!! O INTERLOCUTOR NÃO SABE QUE SE UM DESCOLADO FALA "LUIZ FERNANDO", SÓ PODE SER O DIRETOR DE "HOJE É DIA DE MARIA" E "LAVOURA ARCAICA", UM CINEASTA QUE DESLOCA A NARRATIVA USANDO O CHIAROSCURO DE CARAVAGGIO E MESTRES BARROCOS PARA REPENSAR A CULTURA BRASILEIRA!!! AGORA ELE VAI TER DE SAIR CABISBAIXO DA GALERIA ONDE UMA NOVA REVELAÇÃO DO CURSO DE MESTRADO DA UFRJ APRESENTA SUA INSTALAÇÃO BASEADA EM PRESERVATIVOS E ABSORVENTES USADOS COMO FORMA DE REFLEXÃO SOBRE AS RELAÇÕES SOCIAIS MEDIADAS PELA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA!!! E VAI TER DE IR COMER UM PODRÃO NA CARROCINHA DA ESQUINA, PORQUE É O MÁXIMO QUE SUA PARCA CULTURA, SUA IGNORÂNCIA DE QUE "LUIZ FERNANDO" É "LUIZ FERNANDO CARVALHO", LHE PERMITE!!!!
Tem gente que eu conheço que prefere isso a sexo, juro.
quarta-feira, dezembro 28, 2005
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4 comentários:
Genial, genial. Abs. R.
Em São Paulo isso é mais intenso, não?
Cá em Portugal acho que ainda ninguém descobriu que o pai da MIA viveu na Mangueira. Ainda bem. Se bem que, por cá, esse género de situações são menos um prazer e mais um castigo. Seremos mais tolerantes? Talvez entre os "deslocados" (não conhecia a expressão), sim.
Procure com cuidado - vc vai achar isso também em Portugal! Existe em todo lugar, em modalidades diferentes. Em Brasília, por exemplo, o chique é citar apelidos de gente que parece poderosa. Você diz ACM Neto e dizem "grampinho?", por exemplo.
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